A MEDALHA QUE FALTAVA
Brasileiras já têm oito pódios garantidos em Tóquio e miram novas conquistas
Ana Marcela foi a melhor do mundo durante os últimos dez anos. Agora, tem um ouro para comprovar isso
“Hoje eu vim pra ser campeã olímpica. Tem 10 dias que eu estou pronta. Fiquei 50 dias treinando na Espanha, entre altitude e campeonato espanhol. Pra ganhar de mim seria difícil. Alguém teria que treinar mais do que eu.”
Ana Marcela Cunha conseguiu. Depois de uma prova que controlou desde o começo, a nadadora brasileira de longas distâncias conquistou a primeira medalha olímpica de sua vida, na prova de maratona aquática dos Jogos de Tóquio. Com ela, se tornou a primeira mulher brasileira a ganhar um ouro na natação.
Seu triunfo é a vitória da persistência. A baiana de 29 anos chegou à medalha em sua terceira participação em Olimpíadas. Ela é a melhor do mundo no esporte nos últimos dez anos, mas ainda não tinha conseguido o prêmio para marcar de vez esse domínio. Ana Marcela já colecionava troféus e medalhas em campeonatos mundiais, mas ainda faltava o pódio olímpico.
Nadar dez quilômetros durante quase duas horas pareceu apenas um detalhe na longa trajetória que a baiana traçou até chegar em Tóquio. Em 2008, em Pequim, competiu com 16 anos e conseguiu um quinto lugar. Oito anos depois, no Rio, decepcionou ao chegar apenas na décima posição, apesar de ser uma das favoritas ao pódio. Para mudar sua sorte no Japão, foi treinar na altitude, condicionando seus pulmões a trabalhar em condições adversas. A estratégia deu certo, e Ana Marcela teve gás quando mais precisou.
A vitória sob os 30 graus do parque Odaiba, em Tóquio, veio graças a uma prova em que ela mostrou por que foi eleita seis vezes nos últimos dez anos a melhor do mundo no nado em águas abertas. A baiana se manteve no pelotão da frente desde a largada e guardou fôlego para um sprint final que lhe garantiu o primeiro lugar.
A prova
Ana Marcela fez uma prova tranquila e se manteve no pelotão da frente desde o começo, superando a largada sempre tumultuada de uma maratona aquática. Desde o primeiro quilômetro, ela controlou o pelotão da frente, passando em todas as boias e portões de marcação de tempo entre as cinco primeiras.
Nem mesmo a alimentação durante a prova foi um problema, como aconteceu há cinco anos. No Rio de Janeiro, ela perdeu uma das garrafas de suplemento que seus técnicos oferecem durante a prova e acabou sem energia no final. Aquele 10º lugar serviu de lição: na penúltima volta, Ana se afastou do primeiro pelotão e foi precisa ao pegar a garrafa. Deu duas braçadas de costas, engoliu todo o conteúdo da garrafa, e arrancou para não mais perder.
No final, apareceu o fôlego que faltou na praia de Copacabana e Ana Marcela manteve a ponta mesmo com vários ataques na volta final. A baiana de 29 anos terminou a prova nas águas do parque Odaiba com o tempo de 1:59:30.8. A prata ficou com a holandesa Sharon Van Rouwendaal (1:59:31.7), campeã olímpica no Rio-2016, enquanto a australiana Kareena Lee levou o bronze, com 1:59:32.5.
Esta é a 18ª medalha do Brasil nos Jogos de Tóquio, sendo a quarta de ouro. Antes de Ana Marcela, Ítalo Ferreira, no surfe, Rebeca Andrade, na ginástica, e Martine Grael e Kahena Kunze, na vela, já haviam subido no lugar mais alto do pódio no Japão.

Frustração no Rio virou combustível
Ana Marcela foi eleita a melhor nadadora de águas abertas do mundo em 2010 e foi campeã mundial nos 25 km em 2011, mas não se classificou para Londres-2012. Essa frustração fez a baiana adotar uma postura mais profissional em relação ao esporte. Quatro anos de trabalho intenso foram suficientes para que a atleta chegasse à Rio-2016 como favorita —entre 2012 e 2016, ela somou cinco medalhas em campeonatos mundiais, nos 5km, 10km e 25km, além do revezamento.
O favoritismo, porém, não se confirmou. Ana Marcela terminou os Jogos em décimo lugar, e em prantos. E ainda teve de ver outra brasileira, Poliana Okimoto, subir ao pódio com um bronze. Aquela foi a primeira medalha olímpica de uma mulher brasileira na natação na história olímpica.
Aquela cena marcou Ana Marcela, que admitiu ter ficado bastante abalada pelo seu desempenho no Rio. Em entrevista após o resultado, desabafou. “Me preparei, e não foram quatro anos, foram oito anos lutando para voltar para uma Olimpíada. Em casa, cogitada como uma das favoritas, tenho certeza de que o que eu fiz aqui foi meu máximo. Mas não é digno de uma atleta três vezes campeã de Copa do Mundo, não sei quantas vezes no pódio de Copa do Mundo, de Campeonato Mundial. Estou triste”, disse a baiana na época.
Quando a pandemia do novo coronavírus atingiu o Brasil em 2020, a nadadora passou a treinar em casa com um equipamento ergonômico que simula movimento e esforço feitos na piscina. Foram seis meses longe da água até que a atleta pudesse retomar os treinos de maneira intensiva: dez vezes por semana, além das sessões de fisioterapia.
A medalha que Ana Marcela carrega no peito hoje é a consagração de uma carreira sólida, de muita cobrança e determinação. É, na verdade, a medalha que faltava para tirar um peso enorme das costas da brasileira. Com isso, o Brasil chega duas vezes seguidas ao pódio da modalidade. E pela primeira vez ao degrau mais alto.
“Finalmente chegou. Fui bastante nova para a minha primeira Olimpíada, em 2008, mas, querendo ou não, esse é o meu quarto ciclo olímpico. Vim de uma não classificação, uma frustração no Rio e um amadurecimento muito grande para chegar até aqui. O que posso dizer é ‘acreditem nos seus sonhos e deem tudo de si'”, afirmou a campeã olímpica após a prova.
Campeã brasileira e de vários países
O domínio de Ana Marcela nas águas abertas é comprovado por um fato: ela chegou a Tóquio com títulos nacionais de seis países. Isso é possível porque na maratona aquática existe uma cultura de intercâmbio de atletas em campeonatos nacionais. Esses torneios contam com a elite dos competidores do país, mas também com estrangeiros que ajudam a puxar o ritmo das provas.
Por causa desse intercâmbio, Ana Marcela enfileirou conquistas em outros países. Ela venceu o campeonato nacional da África do Sul em 2018 e, no ano seguinte, ganhou o título do campeonato dos Estados Unidos.
Já no fim do ano passado, durante um giro pela Europa, foi medalhista de ouro no Campeonato Francês. Na volta ao Brasil, ganhou o Troféu Brasil, que teve uma peruana em segundo e uma argentina em terceiro. E na reta final de preparação para Tóquio, foram mais duas vitórias: na Itália e na Espanha.
Talento nato e impulsionado
Ana Marcela Cunha nasceu em Salvador e foi na Baía de Todos os Santos que ela teve o primeiro contato com as águas do Atlântico. Prodígio desde sempre, aprendeu a nadar com dois anos. Sua primeira competição em piscinas foi aos seis. O talento era nato.
Com 12 anos de idade, já era nadadora profissional e fez sua estreia em provas marítimas. Dois anos depois, aos 14, já fazia parte da seleção brasileira adulta. O contato com o esporte não foi novidade para os pais, que são atletas. Ana é filha da ex-ginasta Ana Patrícia Cunha e do ex-nadador George Cunha. São eles que, até hoje, administram a carreira da filha.
Por mais que tenha tido sucesso em provas de fundo, nas piscinas, foi no mar que a baiana se encontrou —e, a esse talento, adicionou rotinas de treinos intensas e muito trabalho. Sua primeira medalha em maratonas aquáticas —um bronze— veio aos 14 anos, em uma das maratonas do circuito internacional da Fina.
Esse resultado foi importantíssimo para que a nadadora conquistasse olhares em clubes importantes. Em 2007, ela se mudou para Santos, no litoral paulista, para integrar a equipe de nadadoras da Unisanta. O salário oferecido pelo clube foi suficiente para que os pais largassem o trabalho na Bahia e acompanhassem a filha na nova empreitada.
Em entrevista à Piauí, a atleta relembra os esforços do pai para que ela se mantivesse saudável. “Meu pai sempre teve medo de eu me machucar antes de uma prova; me proibia de fazer educação física e chegar perto da quadra no colégio. Ele sabia que, se eu chegasse, iria correr atrás de uma bola. Certa vez, a escola precisou me segurar na diretoria para me impedir de jogar futebol com os colegas. Não adiantou nada. Pulei a janela do diretor e fui mesmo assim.”