
Sob pelo menos três pontos de vista, a lei que criou as sociedades anônimas do futebol (SAFs) deu bons resultados nos primeiros 12 meses de vigência.
Ao permitir o equacionamento das dívidas de três grandes clubes e o início de gestões mais profissionais nessas agremiações, a Lei 14.193, de 2021, que teve origem no Senado, levou boas expectativas a 8,6% dos torcedores brasileiros, fatia representada por Cruzeiro, Vasco e Botafogo.
Os dois primeiros times fazem campanhas bem-sucedidas na Série B em 2022 e o Botafogo consegue até agora ficar fora da zona de rebaixamento depois de voltar à Série A.
A SAF nasceu do PL 5.516/2019, apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e aprovado na forma de um substitutivo do senador Carlos Portinho (PL-RJ). Na avaliação de um ano feita por Pacheco em rede social, o novo marco regulatório do futebol tem dado esperanças de renovação a clubes centenários:
Pacheco também destacou os aspectos de maior transparência que, no seu entender, o modelo da SAF possibilita, o que tem o potencial de atrair muito mais investimentos nacionais e estrangeiros aos clubes brasileiros:
“A lei das SAFs também traz mais transparência e governança corporativa. Obriga a existência do conselho de administração e do conselho fiscal; obriga a ter auditoria externa das contas por empresa independente; e obriga a publicação de demonstrações financeiras. O projeto equilibra o mercado, adequando os impostos à atividade, e traz segurança jurídica para a empresa que quer atuar com futebol. Inglaterra e Alemanha possuem clubes-empresas desde o século 19. Futebol gera empregos e renda. É um ativo do nosso país e a SAF irá ajudar a preservar e fortalecer os clubes brasileiros”.
Otimismo
Em entrevista à Agência Senado, o senador Romário (PL-RJ), ex-jogador e campeão mundial de futebol em 1994, se diz otimista quanto à implantação do modelo da SAF. Quando jogava no Brasil, relembra o parlamentar, teve que conviver com gestões “amadoras e corruptas” em contraste com o alto desempenho sempre cobrado dos atletas por toda a cadeia que gira em torno do esporte, incluindo patrocinadores, jornalistas e torcedores.
— Não tenho dúvidas de que a SAF é uma evolução. É claro que uma mudança efetiva de gestão deve englobar, acima de qualquer modelo, o profissionalismo e a seriedade das pessoas. São elas que erram e acertam. Mas, sem dúvida, o modelo empresarial trazido pela SAF, com regras claras de governança e tratamento da dívida, representa uma oportunidade que favorece uma mudança que nosso país precisa.
— Durante minha carreira, convivi muito no Brasil com dirigentes amadores, que tinham outras atividades e apareciam no clube de vez em quando para resolver alguma pendência. Um contraste enorme entre um ambiente desportivo cada vez mais profissional e competitivo, que já movimentava cifras altíssimas, e um ambiente de gestão totalmente amadora, baseada no improviso. Isso sem falar na corrupção que rolava solta, sem transparência e fiscalização. Foi assim que chegamos aos dias atuais, com diversos clubes endividados e quebrados. Não dá mais para aguentar isso. Espero que a SAF traga o choque de profissionalismo que o Brasil tanto precisa.
Cruzeiro, Botafogo e Vasco são exemplos de equipes que passaram por crises profundas recentemente, incluindo rebaixamentos no Campeonato Brasileiro, hiperendividamento e gestões marcadas por críticas à falta de profissionalismo, além de denúncias de corrupção. Os três viram na SAF uma porta de saída para a reconstrução de suas trajetórias centenárias, durante as quais revelaram craques para a seleção brasileira e sobretudo levaram entretenimento a dezenas de milhões de torcedores.
Cruzeiro
O primeiro grande clube a aderir ao modelo da SAF foi o Cruzeiro.
Após os bicampeonatos no Brasileirão, em 2014 e 2015, e na Copa do Brasil, em 2017 e 2018, a má gestão das contas do clube e o consequentemente hiperendividamento cobraram seu preço. E ele veio de forma rápida. Após ser rebaixado para a Série B do Campeonato Brasileiro em 2019, o time de Belo Horizonte fez campanhas apenas medianas na segunda divisão em 2020 e 2021 e ficou longe de retornar à Série A.

Com a nova lei, sancionada em agosto de 2021, a direção do clube contratou a XP Investimentos visando à transição de seu modelo associativo para a SAF. Em novembro de 2021, a XP entrou em contato com o ex-jogador e empresário Ronaldo Nazário, o “Fenômeno”, que já contava com experiência na gestão de futebol.
Controlador do clube espanhol Valladolid, com 80% das ações, recentemente conseguiu que esse tradicional clube retornasse à La Liga, a prestigiada primeira divisão do país, assistida em todo o mundo. Após pouco mais de 40 dias de negociações, Ronaldo assumiu a direção da SAF do Cruzeiro.
Adquiriu 90% das ações, assumiu a responsabilidade pelas dívidas da equipe (como prevê a lei), e comprometeu-se em investir pelo menos R$ 400 milhões nos primeiros cinco anos de parceria.
Após um início de gestão polêmico, hoje a equipe parece colher os frutos de uma gestão mais equilibrada. Um dos objetivos de Ronaldo era enxugar a folha de pagamentos, impedindo os constantes atrasos nos salários, e ter uma maior racionalidade em novas contratações.
A equipe passou a dar mais prioridade à contratação de atletas livres no mercado. Hoje o Cruzeiro lidera com folga a Série B, e parece ter pavimentado o retorno à divisão de elite. Em recente evento da XP, Ronaldo mostrou mensagens de WhatsApp da época das negociações para adquirir a SAF do clube, e explicou que a segurança jurídica foi o que mais pesou:
Vasco
No domingo, 07, o Vasco da Gama aprovou a venda da SAF do clube à empresa norte-americana 777 Partners. Com experiência na gestão de futebol, o fundo gere clubes de tradição em outros países, como o Genoa (Itália), o Red Star (França) e o Standard Liege (Bélgica).
A venda da SAF provocou euforia na torcida, ansiosa para que possam passar as agruras sofridas pelo Vasco no século 21. Com mais de 100 anos de história, o Vasco se orgulha de ter sido um dos primeiros clubes a contratar jogadores negros, ainda na década de 1930. Isso porque, sob a falsa bandeira do amadorismo, os negros até então não tinham espaço em praticamente nenhum clube. Na prática, o futebol no Brasil passou suas primeiras décadas com fortes traços de elitismo, apartando a inclusão de jogadores advindos das classes menos favorecidas.
O acordo do Vasco com a 777 Partners passa 70% da SAF do clube para a empresa americana. Em carta aberta à torcida, a direção lembrou o passado do clube na luta pelo profissionalismo, fazendo uma alusão com o tempo presente:
“Não há dúvidas de que a SAF adapta o futebol vascaíno à nova realidade do futebol mundial. Dos 30 clubes mais ricos do mundo, 28 são empresas. O Vasco sempre foi pioneiro. Fomos um dos primeiros clubes brasileiros a abraçar o profissionalismo no futebol. Chegou a hora de profissionalizar também a gestão do futebol”.
Botafogo
O outro caso de maior repercussão de SAF no Brasil, no prifmeiro ano de vigência da lei, é o Botafogo.
A tradicional equipe carioca voltou a disputar a Série A em 2022, mesmo ano em que passou seu departamento de futebol ao empresário norte-americano John Textor, controlador da Eagle Holdings, em março. Ele adquiriu 90% das ações da SAF e comprometeu-se a investir pelo menos R$ 400 milhões no time. Esses investimentos já começaram, com a contratação de alguns jogadores badalados, como Patrick de Paula (que jogava no Palmeiras) e Lucas Piazon (que veio por empréstimo do Braga, de Portugal).
Após a euforia inicial da torcida, que viu a criação da SAF como uma verdadeira “tábua de salvação”, o desempenho do Botafogo nesse início de parceria tem sido mediano. Hoje o time está na 12ª colocação Campeonato Brasileiro, para desagrado de parte expressiva dos torcedores. Mas a mensagem de Textor aos aficionados é que a SAF tem planos também de médio e longo prazos para o clube, num modelo de gestão mais estruturado e experimentado em países europeus. Textor também controla o tradicional clube inglês Crystal Palace, além de outros times na Bélgica e nos EUA.
Nova era
A empresa de consultoria de gestão desportiva Win The Game (ligada ao banco BTG) avalia que a lei das SAFs movimentou, no primeiro ano de vigência, mais de R$ 1,5 bilhão no futebol brasileiro. Algo que no entender dessa consultoria indica o início de uma nova era. Mas que deve consolidar-se após a criação de uma liga de futebol brasileiro nos moldes de outras já vigentes há décadas em mercados mais avançados, como os da Inglaterra, Espanha, Alemanha e França.
A criação da liga brasileira (Libra) vem sendo estudada por grandes clubes. O que se espera é que uma gestão profissionalizada administre torneios como o Campeonato Brasileiro, hoje nas mãos da CBF.
Coritiba e Figueirense também já criaram SAFs e buscam agora captar investimentos. Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos, Grêmio e Internacional já constituíram grupos que estudam oficialmente o modelo, embora por enquanto não indiquem o caminho da transformação de seus modelos associativos. Segundo a Win The Game, a constituição de outras SAFs também podem vir através de investimentos em equipes de médio porte, visando à exportação de revelações brasileiras para mercados de todo o mundo.
Esporte-educação
Por mais que o êxtase dos estádios seja a vitrine da SAF, a lei não veio apenas para alimentar os anseios de torcidas sempre ávidas de títulos. O marco regulatório estabelece que cada sociedade anônima do futebol deve instituir um programa de desenvolvimento educacional e social (PDE) para, em convênio com uma escola pública, adotar ações em prol do desenvolvimento da educação através do futebol, e do futebol através da educação.
As SAFs poderão investir na reforma ou construção de uma escola pública, ou na manutenção de quadras ou campos de futebol; na criação de um sistema de transporte de alunos qualificados à participação no convênio; na alimentação de alunos durante os períodos de treinamento e recreação; na contratação de psicólogos, nutricionistas e preparadores físicos, para o acompanhamento do convênio; e na compra de equipamentos necessários à prática desportiva.
Somente poderão participar do convênio alunos regularmente matriculados na escola conveniada e que mantenham o nível de assiduidade às aulas regulares e o padrão de aproveitamento definidos no convênio. Num país em que as mulheres têm por vezes de recorrer à Justiça para jogar em times, O PDE deve oferecer, igualmente, oportunidades de participação às alunas matriculadas nas escolas públicas, visando realizar o direito de meninas terem acesso ao esporte.
Fonte: Agência Brasil